terça-feira, 31 de maio de 2011

Devoção

DEVOÇÃO

— Eu quero ela! — O ser apontava o braço com a palma da mão levemente aberta. — Ela é perfeita!
— Sim, senhor! Ela é muito bonita e atraente.
— Não! Não é apenas essa qualidade, Garbor. Mas sua pele pálida é cheirosa. — Ele aspirou vigorosamente o ar, como se esfregasse o seu rosto ao dela, para poder sentir seu perfume. — Aquele cabelo é liso, comprido e do mais intenso negro. E os seus olhos, que a floresta mais viva no verde de suas folhas se passaria despercebida pela simples presença dessa criatura humana. Tão espirituosa e          . É ela! Garbor é ela.
— Mas ela é jovem, sem tempo de vida suficiente, imatura e não suportaria por muito tempo.
— Não! E sim! Ela é jovem e tem força de vida para manter tal situação e sobreviver, por isso digo sim. E é sábia, tem o peso de suas ancestrais em suas bagagens de conhecimento. Uma longa linhagem de feiticeiras, uma mais poderosa que a outra, e ambiciosas também. Não seguem mais os seus antigos princípios!
— Elas são egoístas! — Disse o outro ser em voz baixa e com um risinho de entendimento.
— São individuais e minhas seguidoras. — Juntou-se ao riso.
*   *   *
A pequena cabana onde eu, Merine, moro era observada das travas da floresta de altivas árvores, pelos dois seres. A minha casinha era de madeira, já fora de um lenhador e estava longe da cidadela e próxima dos perigos da mata selvagem. Mesmo assim eu e minha irmã mais nova morávamos sozinhas e vivíamos de nossas habilidades com ervas e de nossos conhecimentos sobre as artes secretas da magia.
Em uma noite em que minha irmãzinha Melize estava muito doente e mal conseguia sair da cama, aconteceu algo. Ela sofria de dores e alucinações, a febre alta a fazia ver coisas e ela não parava de me dizer:
— Merine! Merine. A resposta é... é não. — A última palavra sempre saía de sua boca forçada e quase sem som. E então ela caía num profundo sono por algumas horas, até que acordava e repetia as mesmas palavras. As primeiras em alto som e gradativamente perdia suas forças até voltar a dormir. Naquela noite, eu fui preparar um chá que libertasse sua mente e diminuísse sua dor. Com a velha chaleira de ferro nas mãos, olhava para as brasas da lareira que se moviam e as chamas aumentavam e tomavam uma coloração mais alaranjada e a forma de um corredor de altas chamas e paredes vivas. E das entranhas do ardente brasil, uma silhueta humana se aproximou. Um homem saiu de minha lareira e me perguntou:
— A humanidade quer a luz? — A seriedade no rosto com leves traços de sátiro, a rigidez do seu olhar negro que se destacava na vermelhidão das chamas e na branquidão de sua pele. Ele usava um tecido negro que envolvia o seu corpo e seu cabelo comprido e ruivo recaído sobre os ombros. Era assustadora a sua pergunta, mas eu sabia que tais fatos não estavam acontecendo por acaso. Minha irmã tão saudável e viva, cair em tão estranha doença e delirar repetidamente com as mesmas palavras, e agora esse indivíduo aparecer assim! Então eu respondi:
— Não. Ela precisa de luz!
— Meu nome é Garbor e fui incumbido de lhe informar que você, se assim o quiser, será a responsável pela vinda da estrela da manhã, que caiu para surgir em vossos corações e trazer a chama que ilumina tal lugar escuro. — Prendi a respiração quando percebi de quem aquele demônio falava. E não me vi merecedora de ser a escolhida de Lúcifer.
— Merine! Merine. A resposta é... luz! — Agora as suas palavras aliviaram sua dor e a expressão de agonia de Melize desaparecera, o que me fez muito bem. Eu temia por Melize, não suportaria perdê-la. Ela era tudo que eu tinha. Enchi-me de entusiasmo e decidi pela honra.
— o que uma simples sacerdotisa e seguidora pode fazer para ser útil e bem vista aos olhos do alvorecer? — O belo rapaz sorriu e então disse:
— No mundo da carne o espírito não interfere. Diretamente, é claro. Ele terá que nascer como um humano. — Percebi as intenções e aquilo me impressionou.
— Sim, minha doce criança. Da sua carne. Aceita?
Nesse instante me perdi em minhas memórias. Vi-me ouvindo as histórias de minha mãe e uma lágrima escorreu no canto dos meus olhos. Surian era o seu nome. Uma boa mulher que ajudava a todos com seus dons e em gratidão a enforcaram e jogaram o seu corpo em um antigo e já inútil poço. Não era isso que eu queria para mim e muito menos para a pequena Melize. Pensei, antes de responder:
— Eu aceito!
— Mãe! — Melize gritou alto. Algo lhe causava dor e ela se remexia sob os lençóis molhados pelo seu suor. Me aproximei dela e me ajoelhei ao lado de sua cama e segurei em sua mão. Ela sorriu, mesmo estando inconsciente pelo sono. Eu sussurrei em seu ouvido:
— Logo tudo irá melhorar, eu prometo! — Me virei e o ser me observava pacientemente. Então eu lhe acenei positivamente com a cabeça e seu corpo se tornou esfumaçado até desaparecer, mas sua voz ainda se podia ouvir:
— Na floresta, na rocha das cerimônias. Antes de o sol encobrir as estrelas e quebrar a serenidade.
Durante o resto da noite eu fiquei ao lado de Melize, acariciando os seus longos cabelos negros até que, quando já quase estava caindo de cansaço, ela abriu seus olhinhos, que brilhavam e apontavam para a porta, como se me dissessem: — Vá! — E então voltou a dormir e eu segui a caminho da mata.
A escuridão da noite encobria o ar gélido da brisa que açoitava os ramos verdes das folhagens. Eu caminhava desconfiada e em passos leves. Meu capuz enfeitado pelas mechas de meus cabelos e meus olhos que enxergavam os feixes de luar que atravessavam os galhos vigorosamente. O silêncio não era normal, pois não se ouvia um único ser vivo respirar. Somente o som de meu coração que batia acelerado e o barulho da queda d’água que estava ao longe. Eu me dirigi para lá, um lugar rochoso e de difícil acesso. A água desabava sobre as pedras e escorria pelo chão, que se transformava num piso espelhado nas noites como aquela.
Havia um altar esculpido em forma de mesa, maciço e entalhado pela natureza e que ficava de frente para a cortina de prata. Aquele local era assombrosamente maravilhoso e tinha fama de amaldiçoado. Muitas das minhas irmãs sacerdotisas foram condenadas por ali festejarem em celebrações de vida, desenvolvimento, declínio e morte. Eu estava com medo, pois aquele fora o cenário da captura de minha amada mãe. Surian liderava o ritual de outono. As colheitas haviam sido satisfatórias naquele ano e nós não passamos fome. Lembrava-me das danças e cantigas, pelo menos do ritmo e das risadas. Da alegria. As roupas simples e leves, soltas ao vento. As bandejas fartas e suculentas tinham o sangue que se dissipava pela manta de água do chão e a cabeça da cabra, disposta em honras no altar. Diferente da do seu pastor que era impuro, como todos que desrespeitam a natureza. Então eu ouvi um som repentino.
— É quem eu espero? — Perguntei em bom som e convicta que ele chegara. Não recebi resposta, então caminhei até o altar de pedra, e outro ruído cortou a quietude. Circundei a pedra e aspirei profundamente o ar, que entrava pelas narinas e estufava o meu peito, os olhos fechados. Eu me senti calorosamente bem. Minha mente estava limpa, mais nada me desconcentrava. O barulho da queda d’água se tornou perceptível. Então me virei e o véu fluído estava dividido e uma figura humana saía das trevas. E ele me chamou:
— Merine. Hoje você é minha carne e servirá aos meus propósitos!
— Sim. — Eu disse pausadamente e me ajoelhando para o belo rapaz que saiu dali nu. Ele não tinha uma aparência forte nos músculos à vista. Tinha a pele alva e cabelos espessos e negros até os ombros. O seu rosto bem traçado e emoldurado pela barba negra, contrastando com os lábios rubros.

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